O Supremo Tribunal Federal foi contraditório ao definir que a prisão de depositário infiel é ilegal. A possibilidade de prisão no caso de prisão por dívida está expressamente prevista no inciso LXVII, do artigo 5º da Constituição Federal. No entanto, os ministros preferiram aplicar a proibição prevista em tratados internacionais de Direitos Humanos, como o Pacto de São José da Costa Rica, colocando-os acima da própria Constituição.
A contradição, de acordo com a tese defendida pelo constitucionalista Ingo Wolfgang Sarlet, em palestra no XXIX Congresso BRasileiro de Direito Constitucional, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, em São Paulo, está no fato de que o Supremo declarou os tratados internacionais ratificados pelo Brasil têm hierarquia supralegal. Isto é, estão acima da legislação infraconstitucional e abaixo da Constituição Federal.
Ingo Sarlet é coordenador de pós-graduação em Direito e professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München (Alemanha), tem cursos e pesquisas na Alemanha e nos Estados Unidos. Atua especialmente nas áreas de Direito Constitucional e Teoria dos Direitos Fundamentais, tendo como principal linha de pesquisa a eficácia e efetividade dos direitos fundamentais no direito público e privado.
“A prevalência da Constituição possibilitaria a prisão. Nesse caso, o Supremo está afirmando a supraconstitucionalidade dos tratados”, afirma o professor da PUC-RS, ao qualificar a decisão como “perigosa”. Para Sarlet, impedir o legislador ordinário de criar qualquer prisão de depositário infiel significa esvaziar o mandamento constitucional. O Supremo teria feito isso ao entender que, como o dispositivo constitucional que prevê a prisão do depositário infiel exige regulamentação por lei, essa lei não pode ser feita pro força do tratado internacional. Sarlet, como o Supremo, considera que os tratados de Direitos Humanos estão no mesmo nível que a Constituição.
Ingo Sarlet explica que considerar supralegal os pactos internacionais foi uma decisão de política judiciária, pragmática, para impedir o alargamento da competência do Supremo. Apenas os ministros Celso de Mello e Ellen Gracie votaram pela elevação dos tratados à hierarquia constitucional.
De forma indireta o próprio presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, reconhece essa possibilidade. “Eu mesmo estimulei a abertura dessa discussão, mas as consequências práticas da equiparação vão nos levar para uma situação de revogação de normas constitucionais pela assinatura de tratados”, disse o ministro durante o julgamento do Habeas Corpus 87.585, sobre prisão de depositário infiel, que aconteceu em dezembro de 2008.
Estado Constitucional Cooperativo
Em artigo publicado pela Consultor Jurídico, em abril, o ministro Gilmar Mendes explica o seu posicionamento, com argumentos diversos do apresentado pelo constitucionalista Ingo Sarlet. Segundo ele, até 2008, o Supremo entendia que os tratados internacionais encaixavam-se no mesmo nível hierárquico das leis ordinárias. No julgamento de dois Recursos Extraordinários (RE 349.703 e RE 466.343), a corte concluiu “completamente defasada” essa jurisprudência.
“Não se pode perder de vista que, hoje, vivemos em um ‘Estado Constitucional Cooperativo’, identificado pelo professor alemão Peter Häberle como aquele que não mais se apresenta como um Estado Constitucional voltado para si mesmo, mas que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade, e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais”, escreveu.
A tendência, afirma, é o enfraquecimento dos limites entre interno e o externo, através dos quais prevalece o direito comunitário sobre o direito interno. “Nesse contexto, mesmo conscientes de que os motivos que conduzem à concepção de um Estado Constitucional Cooperativo são complexos, é preciso reconhecer os aspectos sociológico-econômico e ideal-moral como os mais evidentes”, diz o ministro, com base no que pensou Peter Häberle.
Essa seria uma forma de dar máxima eficácia às normas constitucionais que protegem a cooperação internacional e para a proteção dos direitos humanos como garantia da dignidade da pessoa humana.
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